quarta-feira, novembro 29, 2006



Definição





O estudo das dificuldades de leitura e escrita, em geral, e da dislexia, em particular, vem suscitando desde há muito tempo o interesse de psicólogos, professores, pediatras e outros profissionais interessados na investigação dos factores implicados no sucesso e/ou insucesso educativo. A dislexia representa no momento actual um grave problema escolar, para a qual todos os profissionais da educação estão cada vez mais consciencializados.

As competências da leitura e escrita são consideradas como objectivos fundamentais de qualquer sistema educativo, ao nível da escolaridade elementar, a leitura e a escrita constituem aprendizagens de base e funcionam como uma mola propulsora para todas as restantes aprendizagens. Assim uma criança com dificuldade nesta área apresentará lacunas em todas as restantes matérias, o que provoca um desinteresse cada vez mais marcado por todas as aprendizagens escolares e uma diminuição da sua auto-estima.

Existem presentemente várias definições para a mesma problemática, de entre as quais se destacam:

Actualmente a definição mais concencual é a da Associação Internacional de Dislexia (2002) e do National Institute of Child Health and Human Development - NICHD:

“Dyslexia is a specific learning disability that is neurological in origin. It is characterized by difficulties with accurate and / or fluent word recognition and by poor spelling and decoding abilities. These difficulties typically result from a deficit in the phonological component of language that is often unexpected in relation to other cognitive abilities and the provision of effective classroom instruction. Secondary consequences may include problems in reading comprehension and reduced reading experience that can impede growth of vocabulary and background knowledge. ... Studies show that individuals with dyslexia process information in a different area of the brain than do non-dyslexics.”

Segundo Víctor da Fonseca a dislexia é uma dificuldade duradoura da aprendizagem da leitura e aquisição do seu mecanismo, em crianças inteligentes, escolarizadas, sem quaisquer perturbação sensorial e psíquica já existente (Fonseca, 1999).

A World Federation of Neurology define-a como uma perturbação que se manifesta pela dificuldade na aprendizagem da leitura, apesar de uma educação convencional, uma adequada inteligência e oportunidades sócio-culturais.

Outra definição, surge do Comittee on Dyslexia of the Health Council of the Netherlands, segundo estes a dislexia está presente quando a automatização da identificação das palavras (leitura) e/ou da escrita de palavras não se desenvolve, ou se desenvolve de uma forma muito incompleta, ou com grande dificuldade.

Dislexia: (do grego) dus = difícil, dificuldade; lexis = palavra.


Esta dificuldade em ler e escrever tem sido muitas vezes erradamente interpretada, como um sinal de baixa capacidade intelectual. Muito pelo contrário, muitos disléxicos conseguem em certas áreas e em certos momentos da sua actividade, uma performance superior à média do seu grupo etário. Só se poderá diagnosticar uma dislexia em crianças que apresentem pelo menos uma eficiência intelectual dentro dos parâmetros normativos.





Sinais de Alerta


Aqui estão alguns sinais de alerta que pais e professores devem de ter em atenção quando suspeitam da existência de problemas nas competências de leitura e escrita nos seus filhos ou alunos:


DURANTE A INFÂNCIA:

Atraso na aquisição da linguagem. Começou a dizer as primeiras palavras mais tarde do que o habitual e a construir frases mais tardiamente.
Apresentou problemas de linguagem durante o seu desenvolvimento, dificuldades em pronunciar determinados sons, linguagem ‘abebezada’ para além do tempo normal.
Apresentou dificuldades em memorizar e acompanhar canções infantis e a rima das lenga-lengas.
Dificuldade em se aperceber que os sons das palavras podem dividir-se em bocados mais pequenos.
Entre muitos outros sinais (...).

NA IDADE ESCOLAR:

Lentidão na aprendizagem dos mecanismos da leitura e escrita.
Erros por dificuldades na descodificação grafema-fonema. Dificuldade em compreender que as palavras se podem segmentar em sílabas e fonemas.
Bastantes dificuldades na leitura, com a presença constante de erros, inventando palavras ao ler um texto.
A velocidade da leitura é inadequada para a idade. Dificuldades na leitura de pseudopalavras.
Apresenta dificuldades na rima de palavras.
Escrita com muitos erros ortográficos e a qualidade da caligrafia é bastante deficiente.
Salta linhas durante a leitura, na leitura silenciosa consegue-se ouvir o que está a ler, acompanha a linha da leitura com o dedo.
Demora demasiado tempo na realização dos trabalhos de casa (uma hora de trabalho rende 10 minutos).
Utiliza estratégias e truques para não ler. Não revela qualquer prazer pela leitura.
Distrai-se com bastante facilidade perante qualquer estímulo, parecendo que está a "sonhar acordado".
Os resultados escolares não são condizentes com a sua capacidade intelectual.
Melhores resultados nas avaliações orais do que nas escritas.
Não gosta de ir à escola ou de realizar qualquer actividade com ela relacionada.
Confunde a direita e a esquerda.
Apresenta "picos de aprendizagem", nuns dias parece assimilar e compreender os conteúdos curriculares e noutros parece ter esquecido o que tinha aprendido anteriormente.
Apesar das dificuldades na escola revela ser bastante imaginativo e criativo, com um bom raciocínio lógico e abstracto, podendo evidenciar capacidades acima da média em determinadas áreas (desenho, pintura, música, teatro, desporto, etc.).
Entre muitos outros sinais (...).





Critérios de Diagnóstico


Para se fazer um diagnóstico correcto da dislexia deve-se verificar inicialmente se na história familiar existem casos de dislexia ou de dificuldades de aprendizagem e se na história desenvolvimental da criança ocorreu alguma problemática não normativa.

Na leitura notam-se confusões de grafemas cuja correspondência fonética é próxima ou cuja forma é aproximada, bem como surgem frequentes inversões, omissões, adições e substituições de letras e sílabas. Ao nível da leitura de frases, existe uma dificuldade nas pausas e no ritmo, bem como revelam uma análise compreensiva da informação lida muito deficitária (muitas dificuldades em compreender o que lêem).

Ao nível da produção escrita a sintomatologia é semelhante, verificando-se a presença de muitos erros ortográficos, grafia disforme e ilegível, para além de défices acentuados na construção frásica.


Principais manifestações da dislexia nas competências de leitura e escrita:

. Um atraso na aquisição das competências da leitura e escrita.
. Dificuldades acentuadas ao nível do processamento e consciência fonológica.
. Leitura silábica, decifratória, hesitante, sem ritmo, com bastantes correcções e erros de antecipação.
. Velocidade de leitura bastante lenta para a idade e para o nível escolar.
. Omite ou adiciona letras e sílabas (ex: famosa-fama; casaco-casa; livro-livo; batata-bata; biblioteca/bioteca; ...).
. Confusão entre letras, sílabas ou palavras com diferenças subtis de grafia ou de som (a-o; c-o; e-c; f-t; h-n; m-n; v-u; f-v; ch-j; p-t; v-z;…).
. Confusão entre letras, sílabas ou palavras com grafia similar, mas com diferente orientação no espaço (b-d; d-p; b-q; d-q; a-e;…).
. Inversões parciais ou totais de sílabas ou palavras (ai-ia; per-pré; fla-fal; me-em; sal-las; pla-pal; ra-ar;…).
. Substituição de palavras por outras de estrutura similar, porém com significado diferente (saltou-salvou; cubido-bicudo;...).
. Substituição de palavras inteiras por outras semanticamente vizinhas.
. Problemas na compreensão semântica e na análise compreensiva de textos lidos.
. Dificuldades em exprimir as suas ideias e pensamentos em palavras.
. Dificuldades na memória auditiva imediata.
. Ilegibilidade da escrita: letra rasurada, disforme e irregular, presença de muitos erros ortográficos e dificuldades ao nível da estruturação e sequenciação lógicas das ideias, surgindo estas desordenadas e sem nexo.
. Entre muitos outros critérios de diagnóstico (...).

Outros sintomas que podem estar associados são:

. Problemas ao nível da dominância lateral (lateralidade difusa, confunde a direita e esquerda, lateralidade cruzada).

. Problemas ao nível da motricidade fina e do esquema corporal.

. Problemas na percepção visuo-espacial.

. Problemas na orientação espacio-temporal.

. A escrita pode surgir em espelho.

. Etc.


Nota: Não é necessário que estejam presentes todos estes indicadores em simultâneo, para que seja diagnosticada um caso de dislexia. Estes indicadores devem apenas alertar para a possibilidade de um possível caso de dislexia, já que é preciso compreender a razão destes comportamentos.


Segundo vário autores, não se pode falar de dislexia (ou melhor ... não se pode fazer um diagnóstico definitivo) antes dos 7 anos, ou para ser mais rigoroso, antes de pelo menos um ano de escolaridade, pois anteriormente a esta idade erros similares são banais pela sua frequência.

Quando a uma perturbação da leitura "ligeira" está associada um Q.I. elevado, a criança pode estar ao nível dos seus companheiros durante os primeiros anos escolares, e esta não se manifestar completamente antes do 4º ano de escolaridade, ou mesmo posteriormente.

Para um correcto diagnóstico de uma perturbação da leitura e escrita é indispensável recorrer à avaliação de profissionais experientes neste domínio.



Critérios de Diagnóstico para Perturbação da Leitura,
segundo o DSM-IV:

O rendimento na leitura, medido através de provas normalizadas de exactidão ou compreensão da leitura, aplicadas individualmente, situa-se substancialmente abaixo do nível esperado para a idade cronológica do sujeito, quociente de inteligência e escolaridade própria para a sua idade.
A perturbação do critério A interfere significativamente com o rendimento escolar ou actividade da vida quotidiana que requerem aptidões de leitura.
Se estiver presente um défice sensorial, as dificuldade de leitura são excessivas em relação ás que lhe estariam habitualmente associadas.





Prevalência da Dislexia





Nos EUA, e segundo o DSM-IV, é de 4% a estimativa da prevalência da perturbação da leitura nas crianças com idade escolar. No entanto, conforme os vários autores, percentagens de 5 a 10% têm sido encaradas. Isto significa que um pouco menos de um estudante inteligente em cada dez apresenta uma dislexia-disortografia mais ou menos importante.

A perturbação da leitura, isoladamente ou em combinação com a perturbação do cálculo ou da escrita, aparece aproximadamente em 4 de cada 5 casos de perturbação da aprendizagem.

Outros estudos referenciam que 40% dos irmãos de crianças disléxicas apresentam de uma forma mais ou menos grave a mesma perturbação. Uma criança cujo pai seja disléxico apresenta um risco 8 vezes superior à da população média.

Constata-se uma patente desproporção entre rapazes e raparigas disléxicas, segundo alguns autores 70 a 80% dos sujeitos diagnosticados com perturbação da leitura são do sexo masculino, ou seja, uma proporção de 8 a 9 rapazes para uma rapariga. Contudo, estudos mais recentes apontam para uma maior proporcionalidade entre os dois sexos quando utilizam amostras não clínicas.


Vejamos agora alguns dos disléxicos mais famosos, são os casos de:

Agatha Christie
Albert Einstein
Alexander Graham Bell
Antony Hopkins
Beethoven
Ben Jonhson
Bill Gates
Franklin D. RooseveltFred Astaire
Galileo
Harrison Ford
Jack Nicholson
John Lennon
Julio Verne
Leonardo da Vinci
Louis Pasteur
Magic Johnson
Mozart
Pablo Picasso
Steven Spielberg
Thomas Edison
Tom Cruise
Van Gogh
Walt Disney
Winston Churchill,
entre muitos outros...





Problemática Emocional




As repercussões da dislexia são muitas vezes consideráveis, quer ao nível do sucesso escolar, quer ao nível do comportamento da criança, originando nestes dois domínios perturbações de gravidade variável, que importa reconhecer e evitar na medida do possível.

A criança disléxica é geralmente triste e deprimida pelo repetido fracasso em seus esforços para superar suas dificuldades, outras vezes mostra-se agressiva e angustiada. A frustração causada pelos anos de esforço sem êxito e a permanente comparação com as demais crianças provocam intensos sentimentos de inferioridade.

Em geral, os problemas emocionais surgem como uma reacção secundária aos problemas de rendimento escolar. As crianças disléxicas tendem a exibir um quadro mais ou menos típico, com variações de criança para criança, cujas reacções mais características são:

Reduzida motivação e empenho pelas actividades que implicam a mobilização das competências de leitura e escrita, o que por sua vez aumenta as suas dificuldades de aprendizagem.
Recusa de situações e actividades que exigem a leitura e a escrita, devido ao temor de viver novamente uma experiência de fracasso.
Sintomatologia ansiosa perante situações de avaliação ou perante actividades que impliquem a utilização da leitura e escrita.
Sentimento de tristeza e de auto-culpabilização, podendo apresentar uma atitude depressiva diante das suas dificuldades.
Uma reduzida auto-estima e auto-conceito académico.
Um sentimento de insegurança e de vergonha como resultado do seu sucessivo fracasso.
Um sentimento de incapacidade, de inferioridade e de frustração por não conseguir superar as suas dificuldades e por ser sucessivamente comparado com os demais.
Problemas comportamentais caracterizados por comportamentos de oposição e desobediência perante as figuras de autoridade (pais, professores, etc.), hiperactividade, défice atencional, etc.
Outras problemáticas poderão estar presentes como seja a enurese nocturna, perturbação do sono, etc.

Esta sintomatologia não permite por seu lado a natural concentração, interesse e desejo de aprender, perturbando muitíssimo as condições de aprendizagem na criança.

Co-Morbilidade
Diversos estudos documentam, de forma consistente, que a dislexia está algumas vezes associada a outras perturbações có-morbidas (presença de 2 ou mais diagnósticos diferentes), de entre as mais frequentes destaca-se a Disortografia, Disgrafia, Discalculia, Hiperactividade com Défice de Atenção (PHDA), Problemas de Linguagem, entre outros.


DISORTOGRAFIA - Perturbação que afecta as aptidões da escrita, e que se traduz por dificuldades persistentes e recorrentes na capacidade da criança em compor textos escritos. As dificuldades centram-se na organização, estruturação e composição de textos escritos, a construção frásica é pobre e geralmente curta, observa-se a presença de múltiplos erros ortográficos e uma má qualidade gráfica. É possível haver uma disortografia sem que esteja presente uma dislexia.


DISGRAFIA - Perturbação de tipo funcional na componente motora do acto de escrever, que afecta a qualidade da escrita, sendo caracterizada por uma dificuldade na grafia, no traçado e na forma das letras, surgindo estas de forma irregular e disforme.


DISCALCULIA - É uma perturbação estrutural da capacidade matemática e da simbolização dos números, é de carácter desenvolvimental (não resulta de uma lesão cerebral ou de défices intelectuais) e caracteriza-se por dificuldades específicas da aprendizagem que afectam a normal aquisição das competências aritméticas, apesar de uma inteligência normal, estabilidade emocional, oportunidades académicas e motivação.


HIPERACTIVIDADE (PHDA) - É uma Perturbação do Comportamento de base genética, em que estão implicados diversos factores neurológicos e neuropsicológicos, que provocam na criança alterações atencionais, impulsividade e uma grande actividade motora, ocorrendo mais frequentemente e de um modo mais severo do que o tipicamente observado noutras pessoas.



A ETIOLOGIA DA DISLEXIA tem por base alterações genéticas, neurológicas e psicolinguísticas. Estudos recentes apontam alguns cromossomas como responsáveis da dislexia (e daí a questão da sua hereditariedade), estando agora as investigações científicas centradas na identificação dos genes implicados neste perturbação.
Encontram-se igualmente identificas as regiões cerebrais responsáveis pelas alterações psicolinguísticas observadas nas crianças com dislexia. Essas regiões localizam-se no hemisfério esquerdo do cérebro e apresentam uma menor activação das áreas cerebrais responsáveis pela descodificação fonológica, leitura e escrita.






Fonte:

http://www.dislexia.web.pt/

Para saber mais:
http://www.apdis.com/
http://www.dislexia.org.br/
http://www.malhatlantica.pt/ecae-cm/VicenteMartins6.htm
http://www.dyslexia.com/
http://www.iamdyslexic.com/
http://www.dyslexia-teacher.com/

quinta-feira, novembro 23, 2006

A notícia chegou hoje... chegou de forma virtual como chegam nos dias que correm as novidades no correio. Custou a acreditar mas era real. De alguma forma insensata e contranatura habituamo-nos a crer que existem pessoas bafejadas pela imortalidade. Era este o caso do Dr Eric Schopler, fundador da metodologia TEACCH, que deixou este mundo no passado dia 21 de Novembro.
Eric Schopler (1927-2006) deixa-nos o legado de uma vida dedicada aos outros e um trabalho pioneiro na área do tratamento humano e afectivo de crianças, jovens e adultos portadores de autismo.
A metodologia TEACCH é hoje uma ferramenta de primordial importância na educação, escolarização e inclusão de cidadãos portadores de autismo, nas escolas regulares, da maior parte dos países do mundo.
Tive o previlégio de ver e ouvir o Dr. Eric Schopler quando participei no 1º Curso Teórico-Prático de Avaliação e Intervenção no Autismo - Programa TEACCH, apresentado pelos Profs. Eric Schopler e Margaret Lansing da Divisão TEACCH da Universidade da Carolina do Norte, organizado no âmbito do III Seminário de Desenvolvimento, promovido pelo Centro de Desenvolvimento da Criança do Hospital Pediátrico de Coimbra que decorreu em Coimbra, no auditório da Escola Superior de Enfermagem Bissaya Barreto nos dias 23 e 24 de Maio de 1996.
Nessa altura eram raros os casos de integração de crianças autistas no ensino regular. Ouvir aquele homem já idoso de cabelos brancos e sorriso aberto foi uma benção que renovou a esperança de todos aqueles (muito poucos) que acreditavam que o lugar dos seus semelhantes, portadores de autismo, era na escola (como na vida) com os outros, lado a lado, numa descoberta mútua.
Dez anos depois evoluimos positivamente no sentido da inclusão escolar e educativa. Crianças e jovens portadores de autismo partilham agora contextos educativos e sociais que seriam inamagináveis em 1996. Tem sido um caminho de passos lentos e alguns retrocessos, que da intervenção precoce à secundária, se vai desbravando... Mas o rumo é seguir em frente. Ontem como hoje. Sempre! É esse o caminho. Foi ess a grande mensagem que então trouxe de Coimbra.
Por tudo isto e muito mais... Obrigado Dr. Schopler!
João Paulo Amaral

Para saber um pouco mais sobre Eric Schopler e a metodologia TEACCH visitar: http://ericschopler.blogspot.com/, http://www.teacch.com/

quarta-feira, novembro 22, 2006


«...Mas se todo o mundo é composto de mudança troquemos-lhe as voltas que ainda o dia é uma criança...»
José Mário Branco, a partir de um soneto de Luís Vaz de Camões.


Inclusão Escolar

Como é sabido, as tendências actuais, em matéria de princípios, políticas e práticas educativas, vão claramente no sentido da promoção da escola para todos, no sentido da promoção da escola inclusiva. Estrutura educativa de suporte social que a todos receba, que se ajuste a todos os alunos independentemente das suas condições físicas, sociais, étnicas, religiosas, linguísticas, ou outras, que aceite as diferenças, que apoie as aprendizagens, promovendo uma educação diferenciada que responda às necessidades individuais deixando assim de ser institucionalmente segregadora.
Razões de ordem filosófica, ética e sociológica, razões que se prendem com o mais elementar respeito pelos direitos humanos, razões que se prendem com a aceitação da diferença e dignidade do “outro” e, no caso de Portugal, com imperativos legislativos, fundamentam e justificam uma política educativa integradora. Uma política educativa que promova - sublime desafio aos sistemas educativos actuais - uma educação inclusiva. Educação que reconheça portanto o direito de todos os alunos aprenderem juntos, independentemente das dificuldades e diferenças que apresentam.


Suporte Emocional

Gostaríamos, no entanto, de salientar algumas razões específicas, claramente do âmbito pedagógico, que suportam estas posições.
Em primeiro lugar deve reconhecer-se que o contacto e o convívio, no plano formal e informal, entre alunos com e sem dificuldades, entre alunos com e sem deficiências, é um meio insubstituível de normalização dos comportamentos. É uma oportunidade para a construção de laços de vinculação, de relações afectivas, que podem vir a revelar-se, ao longo dos anos, como um suporte emocional fundamental na construção da personalidade dos alunos com deficiência. É um apoio aos seus esforços para se envolverem em transacções sociais progressivamente mais autónomas e diversificadas. Por sua vez os alunos ditos “normais” poderão desenvolver uma maior capacidade, afectiva e cognitivamente construída, de aceitação da diferença.

Suporte Social e Instrucional

Em segundo lugar, deve referir-se o facto de, num envolvimento normalizante, os pares da mesma idade ou idades próximas (colegas) poderem funcionar, com ou sem a mediação dos professores, como um suporte social (círculo de amigos, apoio e partilha de actividades na escola, vizinhança, comunidade local...) ou como um suporte instrucional (aprendizagem cooperativa, modelação, aprendizagem por imitação...), mecanismos extraordinariamente importantes no desenvolvimento das crianças e jovens com deficiência intelectual acentuada.Com efeito, a ajuda pode resultar de recursos informais interiores ou exteriores à escola (colegas, amigos, familiares, grupos sociais...) ou de recursos formais (médicos, professores, serviços técnicos vários...). Deve no entanto reconhecer-se que não se tem valorizado suficientemente o papel que as redes de suporte social informal podem exercer junto das crianças com deficiência intelectual acentuada e suas famílias.
Também no que respeita aos mecanismos formais de apoio se podem ir encurtando as distâncias entre crianças normais e crianças com deficiência intelectual acentuada. Professores de apoio, trabalhando fora da sala de aula, com pequenos grupos de alunos, podem passar a prestar apoio dentro da sala de aula. Este caminho implica a organização de todo um trabalho cooperativo em que os dois professores, solidariamente, definem e vão interactivamente construindo, a forma de trabalhar. Alguns autores entendem que o apoio na sala de aula pode ter alguns efeitos menos favoráveis nas aprendizagens (interrupção do aluno quando concentrado na tarefa, redução das situações de “conflito cognitivo”, parcialmente anuladas pelo apoio, situações de discriminação, desresponsabilização...). Deve no entanto reconhecer-se que, quando o objectivo fundamental é criar melhores condições de aprendizagem para todos os alunos, a presença de outros recursos na sala de aula, no caso um segundo professor, pode constituir uma ajuda importante.
Da situação anterior não pode no entanto deduzir-se que a inclusão de um aluno com deficiência intelectual acentuada deve ficar confinada à classe. O facto de a escola e a classe serem as grandes referências do processo de inclusão escolar não significa que as crianças com deficiência intelectual acentuada reduzam e limitem o seu processo educativo a esses contextos. Pelo contrário, há que alargá-lo, como já referimos anteriormente, a contextos e ambientes comunitários bem mais abrangentes.

Cooperação Criança-Criança.

Em terceiro lugar gostaríamos de registar o facto de a adopção de uma política educativa, assente na construção de um sistema de educação especial segregado, paralelo ao sistema educativo geral, pressupor, consciente ou inconscientemente, que o factor crítico do desenvolvimento e da aprendizagem, reside na intervenção e na competência técnica de docentes e outros profissionais. Nega-se ou desvaloriza-se, assim, a importância e a força dos mecanismos interactivos e comunicativos criança-criança, nega-se ou desvaloriza-se o papel do grupo e dos envolvimentos sociais naturais como factores fundamentais da construção, normalização e regulação dos comportamentos e das aprendizagens.
É neste contexto que assume toda a importância a aprendizagem activa e o trabalho cooperativo. Deve no entanto referir-se que o ênfase dada à aprendizagem cooperativa não relega a aprendizagem individual para um estatuto de menoridade. Com efeito, o equilíbrio entre trabalho cooperativo e trabalho individual é extremamente importante e implica uma reflexão aprofundada sobre as formas de organizar a sala de aula.


Cooperação Criança-Criança e Mediação do Professor

O simples facto de se colocarem crianças lado a lado, deficientes ou não, não garante, só por si, a manifestação de interacções e formas de ajuda positivas, podendo mesmo ocorrer atitudes relacionais negativas.
É, sem dúvida, enorme a capacidade de os alunos se ajudarem mutuamente. Mas para que esta capacidade se manifeste em toda a sua plenitude, situação que contribui francamente para a construção de um clima favorável às aprendizagens, é necessário que os professores liderem o processo e encorajem e cooperem com os alunos.
Sabemos hoje que muitas vezes os alunos, espontaneamente, ou como tutores que beneficiam da mediação do professor, são mais eficazes do que os adultos na promoção de certas formas de ajuda, sejam elas de suporte social ou de suporte instrucional.

Cooperação e Organização da Sala de Aula

Uma boa organização da sala de aula exige a presença de regras claras, quer no que respeita ao que é e o que não é um comportamento aceitável, quer no que respeita à forma de execução das tarefas e actividades de aprendizagem, base para que o professor seja capaz de ensinar sem dificuldade e os alunos possam melhorar as suas aprendizagens. No entanto, não é possível esquecer que todo esse processo de organização e funcionamento deve passar pelo respeito mútuo, pela aceitação e compreensão das necessidades do outro, por um processo aberto e dinâmico de negociação onde o aluno se sente responsável e participante. Responsável e participante nas questões que têm a ver com a gestão dos comportamentos na sala de aula, com a construção de um clima social favorável às aprendizagens e na determinação dos próprios objectivos de aprendizagem. Responsável e participante na formulação dos programas e conteúdos de aprendizagem e na avaliação dos seus próprios progressos, verificando, através de critérios cooperativamente construídos entre professor e alunos, se os produtos da sua actividade se ajustam às aprendizagens a realizar e que previamente foram negociadas.

Relações de Vizinhança e Contextualização das Aprendizagens

Por último, importa referir que a frequência de uma instituição de educação especial, na generalidade dos casos mais ou menos afastada da área de residência do aluno, implica um corte nas relações com os seus amigos e vizinhos. Da mesma forma, condiciona gravemente a implementação de currículos funcionais, ao afastar o aluno dos contextos sócio-educativos onde as aprendizagens se deveriam realizar e que em termos gerais coincidem com as estruturas locais onde se prevê que, no seu futuro, venha a utilizar essas competências. De facto, é sobejamente conhecida, no caso das pessoas com deficiência intelectual acentuada, a importância da aprendizagem contextualizada. Isto sugere que, sempre que possível, as aprendizagens devem decorrer nos contextos e nas condições em que posteriormente essas competências irão ser exercidas.

INCLUSÃO E SUPORTE SOCIAL ÀS FAMÍLIAS

A implementação de uma política de inclusão escolar não pode no entanto ignorar todo um conjunto de factores inerentes à dinâmica de funcionamento das famílias com crianças deficientes, na medida em que, o confronto com a inclusão, é ele próprio gerador de stress.
Stress Familiar e Institucionalização
Como já referimos anteriormente estas famílias, embora consideradas competentes e capazes de responder às necessidades dos seus filhos, são contudo particularmente vulneráveis à experiência do stress, podendo afirmar-se que a deficiência influencia as interacções familiares a nível dos seus vários subsistemas (marital, parental e fraternal). Esta influência, como referem vários autores, parece manifestar-se nomeadamente a nível da redução do grau de satisfação conjugal, da ruptura ou disfuncionalidade das relações pais-filhos, da modificação qualitativa das interacções entre irmãos, no aumento das dificuldades económicas e num maior isolamento e diminuição da mobilidade social.
O aumento do stress familiar, motivado pela decisão de a criança com deficiência frequentar, não uma instituição de educação especial mas uma escola regular, parece resultar nomeadamente dos seguintes factores:

1.1.1. Do confronto diário com a diferença entre os seus filhos e as crianças ditas “normais”.
1.1.2. Do sentimento de não serem aceites pelos outros pais, docentes e serviços, ou seja, do quadro geral de expectativas que constroem a partir das atitudes dos outros (reacção social negativa).
1.1.3. Do confronto com as dificuldades de adaptação social e escolar dos seus filhos.
1.1.4. Do receio de a integração acarretar a perda de outros serviços prestados à criança e à família.
1.1.5. Do receio de colocarem os seus filhos num envolvimento que consideram “não preparado” para os receber e onde portanto estarão “menos protegidos”.
Se é difícil mudar a escola tornando-a mais receptiva à diferença (escola como factor de integração), é também imperioso que se reconheça que, sem essa mudança, sem a capacidade de se ajustar às expectativas e necessidades das famílias e dos alunos, sem se tornar inclusiva, será um factor e uma fonte considerável de stress e violência para o aluno e para a família.
Sem esta capacidade de mudança a escola, que se pretende inclusiva, acaba por ser, ela própria, factor de institucionalização. É este um dos grandes desafios que se colocam ao actual sistema escolar.
1.1.6. O aumento do stress familiar parece ser o factor maioritariamente responsável pela institucionalização.
O processo de individualização e diferenciação curricular, entendido em termos de uma escola inclusiva, não pode portanto ignorar que o aumento do stress familiar parece ser exactamente o factor que, mais significativamente, leva os pais a decidirem-se pela institucionalização dos seus filhos.

Suporte Social e Inclusão

A diversidade de apoios sociais, formais e informais, parece levar à redução do stress familiar .
É conhecido o facto de as famílias das crianças deficientes serem particularmente vulneráveis à experiência do stress. A investigação mostrou que as famílias que apresentam menos stress são as que recebem ajudas de várias fontes. Os parentes e amigos podem desempenhar um papel fundamental na promoção do alargamento das interacções sociais das famílias com crianças deficientes. Também os profissionais são um apoio importante com que as famílias deverão contar, embora a história das relações entre pais e profissionais nem sempre tenha sido positiva. Assim, se a diversificação dos sistemas sociais de apoio parece conduzir à redução do stress familiar, não tem mais sentido continuar a entender a individualização e diferenciação na óptica reducionista da simples adaptação do currículo às necessidades e níveis de desenvolvimento do aluno.
A individualização e diferenciação curricular também deve ser entendida na óptica do suporte social à família, na óptica da promoção de estratégias de suporte social que reduzam o stress familiar e ajudem à implementação de uma efectiva política de inclusão. A tendência actual para a colocação no envolvimento o menos restritivo possível, para a desinstitucionalização, não pode continuar a ser “travada”, inibida, bloqueada, pela falta de suporte social às famílias, não pode continuar a realizar-se na base de graves custos para os pais.


Mudar a Escola

Trata-se, pois, e antes de tudo, de mudar a escola, de a transformar capacitando-a para a integração escolar em geral. Trata-se de a capacitar para a criação de situações pedagógicas que assentem no reconhecimento de que cada aluno tem o direito de ser pedagogicamente olhado de forma diferenciada, o que pressupõe a adopção, de forma clara e inequívoca, de uma estratégia de integração e inclusão escolar.
Níveis Sistémicos
Aos vários níveis sistémicos a individualização e a diferenciação curricular, entendida na óptica da mudança da escola, envolve uma multiplicidade de factores e de dimensões que, de forma extremamente sintética, procuramos apresentar nos tópicos que se seguem.


1.1.7. A NÍVEL MACRO (PAÍS)
1.1.8. Flexibilidade / Rigidez do sistema educativo
1.1.9. Legislação e medidas alternativas previstas
1.1.10. Recursos materiais e humanos; apoios complementares
1.1.11. Formação de professores
1.1.12. Critérios de transição e retenção (avaliação)
1.1.13. Quadros; Fixação dos professores à escola
1.1.14. A NÍVEL MESO (ESCOLA)
1.1.15. Gestão e administração escolar; defesa de uma política de inclusão
1.1.16. Organização social escolar
1.1.17. Recursos educativos e apoios complementares
1.1.18. Relação escola/família/comunidade
1.1.19. A NÍVEL MICRO (SALA DE AULA)
1.1.20. Atitudes e sensibilidade do professor
1.1.21. Diversificação de estratégias, actividades, materiais
1.1.22. Diferenciação Pedagógica
1.1.23. Aprendizagem cooperativa e ensino cooperativo
1.1.24. Os parceiros (colegas) como suporte social (círculo de amigos)
1.1.25. Os parceiros (colegas) como suporte instrucional (alunos como tutores)

Fenómeno Multidimensional

O grande desafio que se coloca à escola é o de encontrar formas de responder efectivamente às necessidades educativas de uma população escolar cada vez mais heterogénea, de construir uma escola efectivamente inclusiva, uma escola que a todos aceite e trate de forma diferenciada.
Uma tal mudança implica uma nova filosofia organizacional, assente nos princípios da inclusão, integração e participação, filosofia que tem que ser complementada com medidas paralelas nos sectores da saúde, da segurança social, da formação profissional e do emprego.
Uma tal mudança implica alterações profundas no plano da organização e gestão curricular, no plano da gestão escolar, na plano da formação dos docentes e outros técnicos.
Uma tal mudança implica uma nova política de articulação e implementação de serviços externos de apoio, uma política que encaminhe para a escola recursos adicionais.
Uma tal mudança implica a adopção de perspectivas comunitárias que apontem para a construção de redes alargadas de suporte social que dinamizem a participação activa das famílias, que mobilizem a comunidade educativa, o grande público, os mass media, na promoção de atitudes positivas em relação à integração das pessoas com necessidades educativas específicas na sociedade em geral e na escola em particular.


Complexidade

Mas não nos iludamos com a aparente simplicidade destas questões, pois se as reflexões de muitos estudiosos sobre estas matérias já não são de agora, o que é certo é que talvez não seja incorrecto afirmar que a escola, tradicionalmente enfeudada à massificação pedagógica, só recentemente se começou a interrogar seriamente sobre a discriminação pedagógica, sobre a sua própria incapacidade integradora.
Investimentos na beneficiação da infra-estrutura escolar, no alargamento da rede, na formação dos docentes, na modificação dos currículos, na unificação dos estudos, no prolongamento da escolaridade obrigatória, têm modificado a face da escola. No entanto, apesar das reformas do sistema educativo levadas a cabo nos últimos anos, as discriminações sociais e pedagógicas continuam e mantêm-se em níveis elevados o insucesso e abandono escolar. A “democratização” do sistema escolar arrastou consigo a exclusão e o insucesso; a “democratização” da escola não se traduziu numa orientação pedagógica integradora, orientação que deveria ser a de toda a educação.
Mudanças significativas têm sido introduzidas nos sistemas educativos ao longo dos últimos anos. Fortes evidências confirmam que alguns alunos podem necessitar de mais tempo para se apropriarem dos conteúdos programáticos e de uma participação mais activa e mais prática no processo de construção das aprendizagens. Reconhece-se a importância de introduzir abordagens mais individualizadas, diferenciadas, cooperativas, de introduzir modificações mais ou menos profundas nos conteúdos programáticos, mas não de introduzir estratégias explicitamente distintas das usadas com os restantes alunos. Entende-se que os alunos devem aprender uns com os outros. No entanto, apesar dos estudos realizados e da divulgação das práticas educativas mais efectivas, o impacto de todo este conhecimento, na forma como as escolas respondem às necessidades de uma população escolar tão heterogénea, tem sido extremamente limitado.

Valores

Apesar de todas estas mudanças, cumulativamente pedagógicas e político-organizacionais, o significado social da escola em nada ou em muito pouco se alterou, continuando a aprendizagem a ser avaliada, ao contrário do que muitas vezes se afirma, em termos de desenvolvimento exclusivamente técnico, científico e económico. Um abismo imenso separa a escola actual do princípio básico de que ela própria se reclama, o princípio de que está primordialmente ao serviço do desenvolvimento humano de todos os alunos.
É este o grande desafio que actualmente se coloca à escola, desafio tão claramente expresso no “Pacto Educativo para o Futuro”: “A finalidade essencial do processo educativo é o desenvolvimento e a formação global de todos, em condições de igualdade de oportunidade, no respeito pela diferença e autonomia de cada um. A formação global é pessoal, cívica, científica, cultural, técnica e prática”.
Trata-se de uma questão simultaneamente política e pedagógica, de um desafio que encerra, antes de tudo, um problema de valores e de hierarquia de valores.
Quando, não apenas a escola, mas toda a colectividade, der corpo ao sonho de um sistema educativo directa e primordialmente ao serviço do desenvolvimento e da formação global de todos, quando o projecto social definir como prioridade absoluta, como valor supremo, o desenvolvimento humano, a escola será então totalmente inclusiva, diferenciadora e integradora, não mais massificadora e institucionalmente segregadora.
A escola será então um tempo e um espaço, físico e simbólico, de construção do desenvolvimento humano, de construção de liberdade e autonomia, um espaço e um tempo de dignidade, de solidariedade, de respeito por si próprio, pelos outros, pela aprendizagem e pelo envolvimento.
In, "Currículos Funcionais - Manual para Formação de Docentes" - Instituto de Inovação Educacional do Ministério da Educação - 2000. Autores: Ana Mª. Bénard da Costa, Francisco Ramos Leitão, Jorge Santos, José Vaz Pinto e Noémia Duarte Fino.), http://www.malhatlantica.pt/ecae-cm/Inclusao.htm, 2006-22-11